Livros que libertam

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Livros que libertam

Era improvável que os destinos de Ilma de Jesus Bonfim, 45 anos, e Priscila Regina Silva da Costa, 32, se unissem de alguma forma. Ilma, nascida em Cocos, no Extremo-Oeste baiano, radicou-se em São Paulo (SP) há mais de dez anos. Priscila também veio de fora: de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana de Recife (PE). 

Cada uma com seu caminho, as duas foram parar no Conjunto Penal Feminino de Salvador, no Complexo da Mata Escura – mais especificamente, na biblioteca da penitenciária. Juntas, são as ‘guardiãs’ do espaço, que conta com cerca de mil livros. O nome não poderia ser mais adequado: Mentes Livres. 

Desde então, nenhum livro sai dali sem passar por elas. “Tem de todo tipo: literatura, suspense, espiritismo, Ciências Sociais, Direito...”, começa a enumerar Ilma. Os preferidos, sem dúvida, são os de romance. “Aquela coleção de livros amarelinhos”, completa Priscila, referindo-se a dezenas de livros em uma das três estantes da sala. Eram os conhecidos romances de banca – eles mesmo: Julia, Sabrina e Bianca. A biblioteca foi o local de trabalho escolhido pelas duas no conjunto. A atitude se destaca porque, no estado, só há uma penitenciária onde o sistema de remição de pena por leitura foi implantado. Desde o ano passado, o Conjunto Penal de Itabuna, no Sul do estado, permite que detentos reduzam a pena apresentando resumos e resenhas dos livros lidos. 

Mas, logo em seguida, as preferências são dominadas por autores best-sellers. Código da Vinci e Inferno, do norte-americano Dan Brown, são os primeiros a ser lembrados. Outro americano, Stephen King, famoso por seus thrillers, é outro que está na lista dos principais empréstimos da biblioteca. 

“Best-sellers são os preferidos. O pessoal não lê muito Jorge Amado, essas coisas. Nem biografia, a menos que seja a própria pessoa contando a vida. O que elas têm lido muito também é poema. Ultimamente, parece que todo mundo está apaixonado”, diz Ilma, aos risos. Jorge Amado pode até não ser o preferido na Mentes Livres, mas, por outro lado, é o campeão nos empréstimos do sistema estadual de bibliotecas, como um levantamento inédito da Fundação Pedro Calmon (FPC) para o CORREIO mostrou na semana passada. 

A saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer, que pode ser encaixada tanto na lista dos mais vendidos quanto dos livros carregados de romance, também é procurada. O problema aí já é outro. “Não temos ainda”, lamenta Priscila. A maior parte do acervo veio de doações – de agentes penitenciários, de professores, de instituições...  

Para completar o ranking, vêm os títulos religiosos. Livros espíritas, que sempre estiveram entre os preferidos, agora disputam também espaço com livros do bispo evangélico e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, como Nada a Perder.  

Não há estatísticas oficiais, mas elas garantem que quem mais lê são as presas provisórias. Acreditam que, enquanto as novatas queiram passar o tempo, as sentenciadas já estejam cansadas. Preferem apenas esperar. “E, como a lei da leitura não foi regulamentada na Bahia ainda, então, não tem incentivo. Tudo que tem algum benefício interessa mais”, opina Ilma. Há dias em que os empréstimos chegam a 20, 25 exemplares. Em outros, não passam de dois ou três. 

Ilma é da turma dos livros religiosos. Tem Nada a Perder, de Edir Macedo, como um dos volumes que mais gostou de ler no cárcere. A Dama da Fé, de Ester Bezerra – a esposa do bispo -, também tem seu lugar cativo entre os preferidos dela. Mas avisa: está, literalmente, escrevendo sua própria história. Ela garante que, quando está escrevendo suas memórias, o tempo na penitenciária passa mais rápido. 

“Gosto de ler porque me fortalece. Além de conhecer as histórias, os livros ajudam a gente a saber como lidar com o ser humano”, diz Ilma, que foi condenada a 18 anos por homicídio. Ela titubeia no início, mas resolve se abrir: diz que assumiu um crime que não cometeu. Ilma, vítima de violência doméstica por anos, morava em São Paulo com a família. 

Em 2004, o marido foi morto em Cocos. Ela conta que foi orientada, na época, por um advogado, a assumir a culpa. Depois, na mesma semana, tentou mudar o depoimento e não conseguiu. “Estou presa por um homem que me perseguia, que me batia, arrancava meus cabelos e me forçava a ter relação com ele. A Justiça nunca olhou para esse fato”, lamenta.  

Ilma, que se formou pizzaiola e tinha sua própria pizzaria na capital paulista, deixou duas filhas para trás. Uma, de 15 anos, estava grávida de dois meses. A outra, de 22, casou na quarta-feira (2). Ela lembra até hoje de todas as mercadorias perdidas no freezer da pizzaria. 

“As injustiças foram muitas a meu respeito. Ele (o marido) já ia para o quarto casamento quando me conheceu e faltavam três meses para eu fazer 18 anos. Me prometeu uma vida. Hoje, eu falo para minhas filhas que elas não devem ter pressa em casar, porque, quando você depende do homem, ele vai te humilhar”. 

Ela cita, ainda, o livro da prostituta Gabriela Leite, morta em 2013 – em 2008, Gabriela, fundadora da grife Daspu, lançou ‘Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta’. Mais tarde, durante a entrevista, Priscila explicou o interesse no livro: ela própria tinha sido garota de programa. Foi presa, há um ano, justamente quando chegava para trabalhar. De volta para casa Priscila também começou com os livros de religião. Já leu todos, até seguir para os romances. Quando conversou com o CORREIO, tinha acabado de ler As Meninas, de Lygia Fagundes Telles. Natural de Jaboatão dos Guararapes, veio para Salvador há dez anos. 

“Eu me envolvi com o tráfico e cheguei a ser presa. Fiquei um ano, até ser transferida para regime domiciliar. Só que comecei a ter contato com as mesmas pessoas (conhecidas do tráfico) por telefone e fui pega por uma escuta telefônica. Eu não participei, mas sabia o que ia acontecer”. O grupo com o qual Priscila se relacionava foi acusado de sequestrar um comerciante em Lapão, no Centro-Norte do estado. 

Seu maior sonho é voltar para Pernambuco, para reencontrar a família. Sem família, ela chegou aqui com um namorado. A relação acabou, mas Priscila decidiu ficar. Deixou os pais e os filhos na cidade natal. 

É quando fala dos filhos que Priscila se emociona. Há cinco meses, seu filho mais velho foi assassinado. “Ele tinha 18 anos. Foi morto por ciúmes, pelo ex da namorada dele”, conta, com os olhos marejados. A filha mais nova tem 16 anos. “Tenho certeza de que vou ser absolvida. Mesmo assim, pedi para ser transferida para o meu estado”. A audiência de Priscila deve acontecer nos próximos dias.

 

Fonte: Correio da Bahia